HUGO BRAZÃO
Forrado
Duo exhibition with Ana Vidigal at Quinta Magnólia, Funchal (March 2023)
Text by: José Pardal Pina
Photo credits: Pedro MA Faria
A oeste do Estreito de Gibraltar, ao longo da placa africana, um grupo de ilhas era assinalado pelos geógrafos gregos como μακάρων νήσοι. A expressão moderna, Macaronésia, reporta-se a essa designação comummente traduzida por “Ilhas Afortunadas” ou “Ilhas dos Afortunados”.
Não consta, no entanto, que os sábios gregos se tenham aventurado para o Atlântico; a colonização destas ilhas aconteceu significativamente mais tarde. Mas para eles, este era um lugar mitológico, reservado às grandes lendas e personagens que habitavam a oralidade grega, enxergado bem longe, a centenas de milhas do continente.
As “Ilhas Afortunadas” eram um modelo imaginado do Eliseu, uma região temperada, onde o Inverno nunca chegava, a vegetação abundava e a felicidade existia para lá da dúvida.
Muito do discurso atual sobre a Ilha da Madeira reflete ainda essa visão fabulosa e efabulada (consoante os interesses em jogo) sobre a Natureza e a paisagem. Há algo de único neste território insular, bafejado a Sul por um clima morno e aprazível, enriquecido a Norte por vistas opulentas, mas todo ele pleno de enfiamentos naturais deslumbrantes. Tão único, aliás, que o ser humano cedo desenvolveu mecanismos de coexistência e compreensão dos fenómenos naturais para construir a sua visão do Mundo e de uma realidade tão distinta da do continente.
É sobre esse território, que devolve um olhar renovado sobre a Natureza e a complexa e persistente relação com a Cultura humana, que Ana Vidigal e Hugo Brazão concebem Forrado, uma exposição que se serve do léxico local para se debruçar sobre a singularidade madeirense.
Numa primeira abordagem, Forrado parece aludir a essa particularidade microclimática da ilha, que envolve o território numa húmida calota nebulosa. Mas este é apenas um véu sobre um rosto; um artifício narrativo, irónico, bem-humorado; um pano a cobrir um objeto heteróclito ou inquietante; um capacete de nuvens, enfim, a cobrir a ilha, que sufoca e se espera passageiro, e que, depois de levantado, revela algo mais profundo – por ventura um acontecimento irrepetível, um diálogo entre pares, a força geradora da arte, um simples acontecimento da vida. O quê exatamente é indiferente, conquanto essa desocultação (da verdade, do objeto em análise, da investigação fenomenológica) seja um momento único e intenso de subjetividade entre obra e sujeito.
Ana Vidigal e Hugo Brazão são artistas radicalmente diferentes. Objetivamente, a sua prática e forma de projetar a Arte, trabalhar o Tempo e desenhar o Espaço não podia ser mais distinta. E, no entanto, uma certa boa vizinhança e um trabalho desenvolvido especificamente para este contexto insular une-os. Como em muitos diálogos artísticos, a riqueza não está tanto na semelhança e na proximidade, mas na diversidade de narrações, nos modos de abordar um mesmo fenómeno, na distância e afastamentos que se sucedem.
Os mais próximos reconhecerão de Vidigal os guardanapos de família com bordados da Madeira, as referências à infância, a exposição dos objetos com recurso a uma economia de meios enxuta, fruto de um olhar seguro e experiente, a inventariação cuidada dos objetos que recolhe e coleciona para mais tarde os usar em instalações ou pinturas. Os menos próximos perdem-se na plasticidade das obras: o desenho de vincos e pregas, as
sombras de planos dobrados, os padrões da calçada madeirense, o humor satírico dos costumes, do asseio, dos cerimoniais.
Para Brazão, esta é uma investigação sobre o comportamento e os mecanismos de coexistência entre o ser humano e o tempo – ou, melhor ainda, sobre o binómio causa- efeito do astro nos estados de ansiedade, hesitação e arrependimento perante a inconstância meteorológica. Numa atmosfera vibrante e humana, ainda que aparentemente paradoxal, a dúvida e a afetação do humor batem-se e esbatem-se nas obras... colados ao ecrã do telemóvel para sabermos o movimento das nuvens, na expectativa que as ciências e engenharias respondam e mitiguem os estragos por vir.
Em Brazão, a construção precede a sensação: o verso é tão válido quanto a frente, como quem espia e encontra o porquê de uma certa idiossincrasia, como quem espreita o forro de um corpo bem vestido. A sensualidade da imagem não se perde nos alinhavados, nos pontos e pespontos, nas bainhas e no desfiado, na densidade do tecido. A técnica não se esquece; existe para evidenciar a plasticidade de um processo, um percurso, um trilho errante nesses territórios psicológicos e insulares que Brazão investiga.
Se em Vidigal temos uma prática que vai da pintura ao arquivo, numa estética e temporalidade que tanto goza do urbano como do documental, sem esquecer o diálogo franco com a cultura local, em Brazão existe a celebração da cor e da expressão, do desenho e do campo alargado da pintura, num olhar atento à paisagem emocional e respetivo fundamento.
É a constante luta entre a euforia dionisíaca e o desígnio apolíneo, a Natureza ctónica e a Cultura humana: a planta que vinga por entre as fendas do asfalto, a fé na ciência que molda o tempo meteorológico e cronológico, as boas maneiras perante a indiferença dos céus.